Após mais de quatro meses de combates, os efeitos geopolíticos e econômicos da guerra na Ucrânia extrapolaram as zonas de conflito e passaram a influenciar cada vez mais os movimentos das potências europeias e dos EUA, que apoiam Kiev, e as decisões de Moscou e de seus aliados no chamado Sul Global.
Se por um lado o Ocidente e suas instituições, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e o G7, seguem com uma postura beligerante e fracassam na construção de saídas diplomáticas, a Rússia, que também não dá sinais de encerrar a guerra, se aproxima da China e de outros parceiros para buscar alívio às sanções impostas pelos rivais, apostando em um discurso de multipolaridade e no possível enfraquecimento da hegemonia norte-americano.
A conjuntura também tem implicações para a América Latina, com destaque para a Venezuela, que pode atuar em duas frentes devido a sua importância no mercado de combustíveis e sua aproximação com potências euroasiáticas. Dona das maiores reservas certificadas de petróleo do mundo, o país surge como uma possível alternativa para suprir a demanda europeia e principalmente norte-americana diante da crise energética causada pelas interrupções no fornecimento de petróleo e gás russos.
Por outro lado, há anos Caracas vem costurando acordos com países não alinhados aos ditames da Casa Branca e busca se colocar como um agente estratégico em novas iniciativas econômicas encabeçadas por Moscou e Pequim.
Para o pesquisador venezuelano Sergio Rodríguez Gelfenstein, embora a guerra na Ucrânia tenha forçado o Ocidente a lidar de maneira mais pragmática com a Venezuela, colocando no horizonte a possibilidade de suspensão de algumas sanções, o país não pode esquecer de aliados que forneceram apoio político e econômico nos anos mais duros da crise e do bloqueio.
“É claro que nessa situação de conflito, as maiores possibilidades vêm dos países amigos, da Rússia, do Irã, da China, da Turquia, ou seja, de países com os quais temos relações, seja porque somos membros da Opep ou porque temos alianças estratégicas. Todo o armamento das nossas Forças Armadas é russo e isso faz com que tenhamos uma relação estratégica com a Rússia. Além disso, a Rússia e a China nos ajudaram muito nos momentos difíceis”, afirma Gelfestein.
Na última semana, dois dos maiores grupos que reúnem países do Ocidente, o G7 e a Otan, realizaram reuniões e anunciaram planos que visam fazer ainda mais oposição aos movimentos russos e chineses. Além da promessa de novas sanções contra a Rússia e mais ajuda militar à Ucrânia, a resolução final do encontro do G7 destacou a continuidade dos planos de investimentos em infraestrutura em países em desenvolvimento para fazer frente à Iniciativa do Cinturão e Rota, plano desenvolvido pela China que também é conhecido como Nova Rota da Seda.
A Venezuela não passou despercebida durante as reuniões de organismos ocidentais. Durante a cúpula do G7, que ocorreu na Alemanha, um representante do governo francês disse a repórteres, segundo a Reuters, que Paris estaria trabalhando pela diversificação de fontes de combustíveis e pela reincorporação do petróleo iraniano e venezuelano ao mercado ocidental. As duas nações são alvos de sanções por parte dos EUA.
“Há recursos em outros lugares que precisam ser explorados. Portanto, há um nó que precisa ser desfeito, se for possível, para trazer o petróleo iraniano ao mercado. Há o petróleo venezuelano, que também precisa voltar ao mercado”, disse o oficial francês. O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, por sua vez, respondeu os comentários e garantiu que o país “está pronto para receber todas as empresas francesas que queiram produzir petróleo e gás para o mercado mundial”.
Apesar de ser abundante em petróleo, a Venezuela e sua indústria petroleira passam por uma crise desde 2019, quando a queda dos preços internacionais aliada às sanções dos EUA contra o setor levaram a produção do país a despencar, saindo de uma média anual de cerca de 2,5 milhões de barris por dia em 2014, para cerca de 500 mil barris diários em 2020. Os abalos no setor energético venezuelano fizeram com que o PIB do país se contraísse em mais de 86% na última década, segundo dados do FMI.
Foi apenas em 2021 que a indústria começou a apresentar sinais de recuperação, apesar de ainda estar distante dos melhores momentos de produção observados há uma década. O país fechou o ano produzindo mais de 870 mil barris diários e em maio de 2022, segundos os últimos dados da Opep, a Venezuela produziu 715 mil barris por dia. Um retorno de empresas estrangeiras ao país poderia alavancar a produção petroleira aos níveis pré-crise e aumentariam as chances de se tornar uma possível fonte para suprir suas demandas do Ocidente.
Ao Brasil de Fato, Gelfestein confirma que o interesse do Ocidente em retomar o comércio de petróleo com a Venezuela está diretamente ligado à guerra na Ucrânia, mas alerta para o desafio que EUA e Europa terão em convencer sua opinião pública de que as hostilidades contra a Venezuela foram um erro.
“O problema é como eles vendem a questão à sua opinião pública. Depois de dizerem que Maduro era o pior do mundo, que ele deveria ser derrubado, depois de tentarem invasões marítimas, invasões terrestres, agressões partindo da Colômbia, tentativas de assassinato do presidente, tentativas de dividir as Forças Armadas, eles fracassaram. Agora como vão vender à opinião pública que estão vindo conversar com a Venezuela porque precisam, de alguma maneira, dar resposta à inflação crescente no preço dos combustíveis e dos alimentos?”, questiona o pesquisador.
Desde o início dos conflitos na Ucrânia, delegações do governo norte-americano visitaram a Venezuela em duas ocasiões. Em março, representantes do governo de Joe Biden se reuniram com Maduro em Caracas e, após o encontro, Washington suspendeu algumas sanções petroleiras contra o país. A decisão permitiu que a norte-americana Chevron iniciasse negociações com a estatal PDVSA para a retomada de operações no país e que a espanhola Repsol e a italiana Eni voltassem a enviar petróleo à Europa. O segundo encontro aconteceu na última segunda-feira e, segundo o próprio presidente venezuelano, deve dar “continuidade à agenda bilateral” entre os EUA e a Venezuela.
A postura da Casa Branca marca uma mudança no tratamento que vinha sendo dado ao governo venezuelano. Embora não tenha abandonado o reconhecimento oficial ao autodeclarado presidente Juan Guaidó e seu governo fictício, iniciado pelo ex-presidente Donald Trump durante sua campanha de “pressão máxima” contra Caracas, a gestão Biden passou a dialogar diretamente com representantes de Maduro e parece estar disposta a iniciar uma revisão em sua política de sanções. Por Ópera Mundi.