A Codevasf, entregue por Bolsonaro a partidos do centrão em troca de apoio político, cresceu em contratos no atual governo e expandiu seu foco e sua área de atuação —tudo isso sem planejamento e com controle precário de gastos. A empresa é presidida pelo baiano Marcelo Andrade, indicado pelo deputado federal Elmar Nascimento (UB).
Ao mesmo tempo, a estatal se transformou num dos principais instrumentos para escoar a verba recorde das emendas, distribuídas a deputados e senadores com base em critérios políticos e que dão sustentação ao governo no Congresso.
Esse fluxo de verbas e obras ocorre por meio de uma manobra licitatória que deixa em segundo plano o planejamento, a qualidade e a fiscalização, abrindo margem para serviços precários, desvios, superfaturamentos e corrupção.
A região norte do estado do Tocantins, conhecida como Bico do Papagaio, foi destinatária de contratos de pelo menos R$ 11 milhões da Codevasf para pavimentação.
As obras na região contam com recursos de emenda parlamentar por indicação do senador Eduardo Gomes (PL-TO), na modalidade emenda de comissão, no caso a Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo do Senado.
No município de Araguatins (a 620 km de Palmas), as obras de asfaltamento da estatal contêm trechos tão precários que expõem os motoristas ao risco de acidente.
Os moradores relatam que o pavimento aplicado há poucos meses amolece e afunda nos dias de muito calor.
Em um trecho asfaltado pela empreiteira Construservice, os moradores reclamam que o pavimento amolecido faz com que muitos motociclistas caiam no chão ao estacionarem seus veículos, uma vez que os pés das motos entram no asfalto, e eles perdem o equilíbrio.
A comerciante Francielle Rodrigues, 30, que vende salgados na via asfaltada pela Codevasf, conta que nos dias de altas temperaturas é comum ter que ajudar clientes a se levantarem quando eles resolvem parar suas motos próximas a sua mesa de quitutes.
“Esse asfalto não tem quatro meses e até hoje derruba moto. Quando esquenta ele amolece, e o pé da moto afunda”, diz.
Em razão dessa situação é possível ver pequenos furos ao longo das margens do asfalto em várias ruas, como se uma máquina tivesse picotado o pavimento em suas bordas.
“Quando passa caminhão pesado também afunda. Parece que o asfalto não endureceu direito”, diz o mecânico Gustavo Silva Rocha, 31.
Também no Bico do Papagaio, no município de Sítio Novo do Tocantins (627 km de Palmas), há contratos de pavimentação do tipo bloquetes de concreto também a cargo da Construservice.
Os moradores do povoado de Macaúba reclamam que a obra na via de acesso à localidade foi paralisada há mais de um mês, deixando grandes espaços entre os trechos já executados.
A estrada passa em frente à propriedade rural onde vive o vaqueiro Ronilson Rodrigues de Sá, 42. “Quando chove, a água que desce da parte alta estraga os pedaços que eles já fizeram”, diz o trabalhador rural.
Em nota, a Construservice admitiu os problemas nos dois municípios do Tocantins e afirmou que eles serão resolvidos a partir de maio.
Já em contratos assinados pela Codevasf no estado de Alagoas em 2019 e 2020, fiscalizadores da CGU (Controladoria-Geral da União) encontraram superfaturamentos, pagamentos indevidos, serviços em duplicidade e obras inacabadas.
O valor total das irregularidades somou R$ 4,3 milhões.
Algumas das vias examinadas estão em Barra de São Miguel, município no litoral alagoano que tem como prefeito Benedito de Lira (PP-AL), pai do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).
Como a Folha mostrou em dezembro passado, Barra de São Miguel foi beneficiada com a destinação de R$ 4,7 milhões em 2021 e de R$ 5,8 milhões em 2020 por meio das chamadas emendas de relator.
Com apenas 8.400 habitantes, é o município alagoano que mais recebeu recursos deste tipo de emenda proporcionalmente à sua população.
Em Pernambuco, no primeiro ano do governo Bolsonaro, em 2019, uma concorrência de pavimentação destoou do padrão em razão de a pregoeira (autoridade responsável pela disputa online) ter desclassificado 18 das 19 licitantes.
A Folha esteve em Petrolina (713 km de Recife) no fim do ano passado e encontrou uma pavimentação precária decorrente de um contrato da Codevasf abastecido com verbas destinadas pelo senador Bezerra Coelho, que ganhou até apelidos.
A obra federal é chamada de farofa ou sonrisal, em referência ao esfarelamento dos trechos pavimentados, que derrete com o forte calor, gruda nos calçados dos moradores e, quando se quebra em pedaços, começa a esfarelar.
A obra foi executada pela empresa maranhense Enciza Engenharia Civil Ltda.
Após a publicação da reportagem, o então prefeito de Petrolina, Miguel Coelho (União-PE), filho do senador, reconheceu a má qualidade da pavimentação e culpou a empreiteira do Maranhão pela precariedade do serviço. Agora Miguel Coelho é pré-candidato ao governo pernambucano.
Como mostrou a Folha na semana passada, a empreiteira Engefort, que lidera contratos recentes da Codevasf para pavimentação, ganhou diferentes licitações nas quais participou sozinha ou na companhia de uma empresa de fachada registrada em nome do irmão de seus sócios.
Em Imperatriz (MA), sede da Engefort, a principal obra feita pela construtora com recursos de contrato com a Codevasf, um anel viário, tem menos de dois anos e buracos enormes, apesar de ter passado por uma reforma.
EMPREITEIRA ADMITE ASFALTAMENTO PRECÁRIO E DIZ QUE ELE SERÁ CONSERTADO
Em nota, a empreiteira Construservice reconheceu que o asfalto aplicado em Araguatins (TO) tem baixa qualidade e se comprometeu a fazer correções no pavimento.
“A Construservice está ciente do problema relatado na cidade de Araguatins (TO), tendo sido detectados pela equipe técnica e serão corrigidos com a remoção e substituição da camada de revestimento asfáltico, com previsão de reinício das atividades a partir de maio de 2022, em virtude das fortes chuvas na região”, segundo a nota.
Também em nota, a Codevasf afirmou que, após recente ação de fiscalização, a empreiteira foi formalmente comunicada sobre a necessidade de correção em parte das obras em Araguatins.
Quanto à paralisação das obras no povoado de Macaúba, em Sítio Novo do Tocantins, a Construservice também admitiu o fato, mas afirmou que a interrupção ocorreu “em virtude da impossibilidade de prosseguimento das obras de terraplanagem devido às fortes chuvas na região, fato público e notório”.
“O serviço será retomado a partir de maio de 2022, inclusive com recuperação do trecho danificado pelas fortes chuvas”, relata a empresa.
Já a Codevasf tem explicação diferente, ao declarar que a obra foi paralisada “para avaliação da composição dos bloquetes de concreto empregados pela empresa contratada, que estavam sendo fabricados com seixo rolado, um agregado comum da região”.
“A contratada apresentou ensaios e laudos relacionados à qualidade do material usado —esses laudos estão em avaliação pela Codevasf”, completou.
Sobre as irregularidades encontradas em pavimentações em Alagoas, a Codevasf afirmou que “analisa e incorpora a seus procedimentos recomendações da CGU” e “encaminhamentos relacionados a emendas ao Orçamento são externos à companhia”.
Quanto à concorrência vencida pela empresa Liga Engenharia, a Codevasf declarou que a empreiteira foi contratada após processo licitatório regular e a unidade técnica do TCU concluiu que não houve superfaturamento.
“Relações sociais ou familiares existentes entre sócios de empresas participantes de pregões e terceiros são desconhecidas e não integram o rol de critérios de classificação ou desclassificação”, afirma.
Um acervo técnico apresentado pela Liga Engenharia mostrou a prestação de serviços para órgãos públicos no estado da Bahia, completou a estatal sobre o assunto.
Em relação ao asfalto “farofa” em Petrolina, a Codevasf relatou que uma inspeção verificou que o problema se deve à presença de um lençol freático raso, identificado após o período de chuvas.
“Seu rebaixamento forçado comprometeria estruturalmente as edificações da área. A Codevasf tem avaliado alternativas, como um programa de macrodrenagem da quadra em que a rua está localizada.”
Procuradas pela reportagem por email e telefone, as empreiteiras não se manifestaram. Flávio Ferreira, Mateus Vargas e Guilherme Garcia/Folhapress.