MAURÍCIO ANGELO/DIÁLOGOS DO SUL – O governo Bolsonaro tem se mostrado um inimigo permanente da saúde dos povos indígenas. Mesmo após enfrentar manifestações em todo o país e do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, garantir que a municipalização estava descartada, o ataque continua.
O Decreto 9.795, publicado na semana passada, apesar de manter a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), como prometido, altera pontos fundamentais para o funcionamento do órgão. Bolsonaro extinguiu o Departamento de Gestão da Sesai e retirou, no texto e na prática, o caráter democrático e participativo da administração da saúde indígena.
Além disso, a nova configuração da Sesai fala repetidamente em “integração com o SUS” na região e nos municípios onde estão inseridos cada DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena). Mais que uma mera mudança textual, vários pontos da competência da Secretaria passam a sofrer a influência direta da rede pública local.
Com isso, o respeito às práticas tradicionais e à independência de gestão dos povos indígenas está ameaçada. As mudanças, polêmicas, ainda estão em debate pelo movimento, por especialistas e mesmo por funcionários da Secretaria. A própria alteração imposta por decreto demonstra a pouca afeição democrática do atual governo. Com os ataques constantes que a saúde indígena tem sofrido desde que Mandetta assumiu o cargo, em abril, as desconfianças são muitas.
Para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), as mudanças do decreto são uma clara tentativa de forçar a municipalização que já havia sido descartada pelo governo em reunião com as lideranças em março e abril. Na avaliação de Issô Truká, da Apib e do Fórum de Presidentes dos Condisi (Conselho Distrital de Saúde Indígena), as alterações são inconstitucionais e o caminho será entrar com uma Ação Civil Pública contra o Ministério da Saúde. A articulação será feita entre a Apib e a 6ª Câmara do MPF.
“Eles tentaram de forma direta a municipalização e não conseguiram. Pelo decreto, impõe essa integração da Sesai com os municípios para já preparar o terreno para uma mudança definitiva. A essência da Sesai sempre foi trazer o SUS para dentro da saúde indígena e não o contrário. Agora a Sesai passa a ser mera fiscalizadora das ações dos municípios”, avalia Truká.
Na visão do porta-voz da Apib, esta é uma forma de manter o poder decisório da Sesai no gabinete do ministro, com tudo tendo que ser revisto e aprovado por ele. Retirar a participação social, que o texto do novo decreto reforça e que Bolsonaro já tinha feito ao extinguir o Conselho Nacional de Política Indigenista e outros, é ir contra o que a Constituição prevê.
“Essa é mais uma tentativa de matar a Sesai por inanição para justificar a municipalização. O que ele quer é ter o orçamento anual da secretaria para fazer o que bem entender”, entende Truká, que não descarta a possibilidade de novas manifestações de povos indígenas em várias regiões do Brasil, como já ocorreu esse ano.
Reforçando as mobilizações contra a municipalização da saúde indígena, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em parceria com a Apib, lançou a cartilha “Orçamento e direito à saúde indígena”. Pautado na educação popular, o material retoma a história de luta que resultou na política nacional de atenção atual e aposta no fortalecimento do controle social para o aprimoramento da política. Exatamente o oposto do que tenta impor o governo Bolsonaro.
NA SESAI, SENTIMENTO É DE CAÇA ÀS BRUXAS
Na avaliação de funcionários da Sesai ouvidos pela reportagem que preferiram não se identificar, as mudanças promovem uma verdadeira “caça às bruxas” na Secretaria. Com a extinção do Departamento de Gestão, presente desde a fundação em 2010, dezenas de cargos foram cortados, inclusive de direção. Os postos devem ser repostos somente em parte e sobretudo por militares, especialmente em cargos estratégicos.
Silvia Waiãpi, tenente do Exército empossada como secretária da instituição por Mandetta há 1 mês, estaria perseguindo muitos funcionários que eram da confiança do ex-secretário Marco Antonio Toccolini, que permaneceu no cargo por dois anos.
O expurgo seria uma tentativa de Mandetta em justificar o discurso de que haveria corrupção na saúde indígena, no entanto sem nunca ter provado nada. Desde que assumiu o ministro tem se manifestado publicamente diversas vezes sobre o tema. Toccolini teria resistido às mudanças propostas pelo ministro que, depois, foi obrigado a recuar.
As mudanças bruscas comprometem o funcionamento da Sesai. Sobre o decreto impor a municipalização à força, não há consenso entre os funcionários, com avaliações distintas sobre as consequências. Teoricamente, o decreto não deve impactar de imediato na forma como o atendimento é feito, já que a média e alta complexidade já ficam sob atribuição das redes locais do SUS.
Mais que a disposição ou não em municipalizar, o perfil militar de Waiâpi tem causado desconforto tanto na secretaria quanto nos DSEIS. Muitos deles receberam visitas surpresa da secretária recentemente. Nas visitas, Waiãpi tende a agir com autoritarismo, o que tem desagradado a muitas pessoas. Com orçamento aproximado de R$ 1,4 bilhão por ano, são muitos os interesses que rondam a Sesai e acomodar todos eles seria um dos objetivos do decreto.
O QUE BOLSONARO ALTEROU NA SESAI:
Extinção do Departamento de Gestão da Saúde Indígena e de dezenas de cargos, sobretudo no gabinete da Sesai e nos DSEIS.
Atribuições do antigo departamento ficam sob a responsabilidade do Departamento de Atenção à Saúde Indígena.
Departamento de Saneamento e Edificações de Saúde Indígena foi reestruturado e virou Departamento de Determinantes Ambientais da Saúde Indígena, mas basicamente com as mesmas atribuições.
Gestão democrática e participativa foi eliminada formalmente das competências da Sesai.
Decreto reforça em diversos momentos a “a integração com as instâncias assistenciais do SUS na região e nos Municípios que compõem cada Distrito Sanitário Especial Indígena”. Medida é vista como forma de forçar a municipalização.