POR CRISTINA MARGATO – Já vai em mais de cem o número de acadêmicos que são contra a possibilidade de Lisboa vir a ter um “Museu das Descobertas”. Numa carta, historiadores, especializados na história do império português, e cientistas sociais explicam porque é que um museu dedicado à expansão portuguesa nunca deverá ter esta designação.
A ideia de criar na capital uma instituição como esta foi defendida no programa eleitoral de Fernando Medina, eleito presidente da câmara de Lisboa. Os signatários da carta consideram o nome “Museu das Descobertas” um erro de perspectiva. A lista de signatários não tem parado de aumentar desde que a carta foi tornada pública.
Aos portugueses juntaram-se desde então investigadores vinculados às universidades de Harvard, Yale, e UCLA, nos Estados Unidos, ao Collège de France, Sorbonne, EHESS, Paris e a EPHE, Paris, às principais universidades brasileiras, São Paulo, Universidade de Campinas, Universidade Federal da Baía, Universidade Federal Fluminense, o University College London, UK, ou a Universidad Complutense de Madrid.
A ideia de construir um ‘Museu das Descobertas’ na cidade de Lisboa, incluída no programa eleitoral de Fernando Medina de 2017, não é nova, e tem sido objeto de algumas reflexões no espaço público. Num momento em que a capital está a viver um surto de turismo e interesse internacional nunca visto, criar um museu sobre este período histórico pode parecer tentador.
Se existem vantagens na criação de um espaço museológico deste tipo, porque é que ele não deve intitular-se ‘Museu das Descobertas’?
Desde logo, porque essa designação cristaliza uma incorreção histórica, razão pela qual, como historiadores e cientistas sociais, não podemos estar de acordo com ela. Apesar do vocábulo ‘descobrimento’, no singular e no plural, ter sido utilizado nos séculos XV e XVI para descrever o fato de se terem encontrado terras e mares desconhecidos na Europa, a verdade é que, na quase totalidade dos casos, ele apenas se refere à percepção da realidade do ponto de vista dos povos europeus.
É inquestionável que Vasco da Gama descobriu o caminho marítimo para a Índia, para quem, naquela altura, vivia na Europa Ocidental. Precisamente porque um dos aspectos que resultou deste e de outros episódios de ‘expansão’ foi o contato entre povos de culturas muito diversas, é que é tão importante considerar o ponto de vista e a percepção de todos os envolvidos. Para os não europeus, a ideia de que foram ‘descobertos’ é problemática.
Ter-se-ão os povos africanos, asiáticos e americanos, de histórias milenares, sentido ‘descobertos’ pelos portugueses? E como se sentirão hoje as populações oriundas desses territórios ao visitarem um espaço museológico que priva os seus antepassados de iniciativa histórica, reduzindo-os ao papel de objeto da ação descobridora, muitas vezes violenta, dos portugueses?
Ou seja, parece evidente que um museu que visa promover, como se propõe no programa eleitoral de Fernando Medina, ‘a reflexão sobre aquele período histórico nas suas múltiplas abordagens, de natureza econômica, científica, cultural, nos seus aspectos mais e menos positivos, incluindo um núcleo dedicado à temática da escravatura’ não deve chamar-se ‘Museu das Descobertas’.
Isso seria uma outra forma de reduzir a riqueza e complexidade dos fatos históricos a um só ponto de vista – o português. Ou de privilegiar este ponto de vista, impondo-o a outros que dele não partilham. Seria, ainda, recorrer a uma expressão frequentemente utilizada durante o Estado Novo para celebrar o passado histórico, e que convoca, por isso mesmo, um conjunto de sentidos que não são compatíveis com o Portugal democrático.
Seria, por fim, optar por uma via que se distancia de experiências museológicas contemporâneas que abordam processos históricos complexos e carregados de sentidos contraditórios e conflituosos.
Na última década, muitos museus, em vários lugares do mundo, têm sido espaços determinantes nas novas formas de pensar a história, quer através das suas instalações permanentes, quer através de exposições temporárias. Atribuir o nome de ‘Descobertas’ a um novo espaço museológico em Lisboa, ainda que nele se incluam múltiplas perspectivas, seria ignorar a riqueza dos debates e da investigação internacional e nacional que tem sido feita sobre o período histórico em questão e os vocabulários que lhe estão associados.
E aquilo que tem sido feito são exercícios de reflexão crítica que conduziram à construção de histórias que não são ‘nacionais’, porque incluem pessoas e experiências de vários espaços geográficos. E que exigiram um grande rigor no momento de escolher as melhores palavras para designar e caracterizar essas histórias.
Os exemplos são inúmeros, e destacamos aqui apenas alguns. Em Washington inaugurou-se, em 2016, o National Museum of African American History & Culture; há mais de uma década abriu, no Brasil, o Museu Afro Brasil; e, em Liverpool, o International Slavery Museum pensa as histórias contrapostas da escravatura. Em muitos países têm-se multiplicado as exposições onde ‘as palavras e as coisas’ são o resultado de uma reflexão crítica.
Porquê insistir, então, num nome que, em vez de valorizar, tanto quanto for possível, as experiências de todos os povos que estiveram envolvidos neste processo, valoriza somente um deles? Mesmo que a diversidade, a multiplicidade e ‘os aspectos positivos e negativos’ venham a ser exemplarmente narrados num futuro museu, não serão comprometidos pela opção de um nome que persiste numa imprecisão histórica?
Os argumentos enunciados contra a designação ‘Museu das Descobertas’ aplicam-se, igualmente, à designação ‘Museu da Interculturalidade de Origem Portuguesa’, já que a esta também subjaz uma narrativa sobre o passado português que peca por uma boa dose de mitificação.
Os portugueses dos séculos XV a XVIII – bem como os dos séculos XIX e XX – nem sempre foram paladinos do diálogo intercultural. Muito frequentemente foram o contrário disto. Como se pode ver, a questão não é apenas a do nome, mas aquilo que o nome representa enquanto projeto ideológico.
Num momento em que se intensificam, em Portugal, os debates sobre a história colonial portuguesa, em que surgem grupos de afrodescendentes que querem uma história plural, em que a academia, jornalismo e sociedade civil começam a falar de forma mais crítica e mais aberta, é importante que um novo museu seja também o reflexo dessa riqueza problematizante.
Encontrar um outro nome que se possa tomar como ponto de partida para refletir e para expor criticamente estes processos históricos, poderá exigir algum esforço. Mas não deixará de produzir resultados melhores do que o uso de uma expressão obsoleta, incorreta, e carregada de sentidos equívocos.”