MANGUEIRA CAMPEÃ: O carnaval que celebrou um Brasil esquecido

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O enredo da Mangueira prometia apresentar a história do Brasil pela perspectiva dos esquecidos – Foto: Reuters/S. Moraes

POR ÓPERA MUNDI – No Carnaval de 1959, a Estação Primeira de Mangueira desfilava com o enredo Brasil, através dos tempos. O “pioneiro” Pedro Álvares Cabral era exaltado, assim como Deodoro, “o notável marechal”. Passados 60 anos, a Verde e Rosa voltou a levar o primeiro Presidente da República para a avenida. Desta vez, ele e outras figuras habitualmente apresentadas como heróis da pátria, como Duque de Caxias, apareciam cercados de mortos em um carro alegórico. Ao executar com perfeição técnica o enredo que prometia apresentar a história do Brasil pela perspectiva dos esquecidos, a Mangueira emocionou o público e se sagrou campeã.

Encarregado de comentar o desfile para uma rádio, o historiador Luiz Antônio Simas diz que ficou sem palavras quando viu o carro alegórico em questão passar no Sambódromo. As personagens eram apresentadas em textos críticos escritos por ele e outros professores de História em escolas do Rio. “É uma preocupação nossa fazer com que a História transcenda a sala de aula e a academia, atuando na esfera pública. Esse enredo dialoga com isso”, diz.

Foi justamente no debate sobre o projeto Escola Sem Partido que o carnavalesco da Mangueira encontrou inspiração para criar o enredo campeão. Rechaçando a ideia de uma história única, Leandro Vieira decidiu escancarar o lado perverso de nomes consagrados pela narrativa oficial.

Além disso, lembrou o protagonismo de figuras perseguidas pelo Estado, como a ex-escrava Luísa Mahin, que articulou levantes e revoltas de escravos na região da Bahia no início do século 19, e a vereadora Marielle Franco, cujo assassinato completa um ano na próxima quinta-feira (14), sem elucidação.

No mês em que o assassinato de Marielle Franco completa um ano, sem elucidação, escola de samba é premiada ao exaltar legado da vereadora e figuras apagadas da narrativa oficial – Foto: Reuters/S. Moraes

Para Simas, a abordagem escolhida pelo carnavalesco é marcadamente atravessada por conceitos do filósofo alemão Walter Benjamin. “É a ideia de escovar a história a contrapelo”, explica. “O enredo fala dos que foram, de certa maneira, escondidos pela história oficial. O Leandro revigora a ideia do carnavalesco como um intelectual público, ativo”, elogia.

Desde o ano passado, observa-se uma aposta em enredos politizados no Carnaval do Rio. A própria Mangueira havia apresentado uma crítica desdenhosa ao corte nas verbas destinadas às escolas de samba pela prefeitura do Rio, sob a gestão de Marcelo Crivella. Já o Paraíso do Tuiuti, agremiação pouco badalada, ganhou projeção nacional e ficou em segundo lugar ao falar sobre a escravidão moderna e representar o presidente Michel Temer como um vampiro em um carro alegórico.

A escolha levou as escolas que seguiram por esse caminho a conquistar simpatia mesmo daqueles menos envolvidos com a festa. Em 2019, esse movimento foi reforçado pelo alcance que teve o samba-enredo da Mangueira, cantado a plenos pulmões por todo o Sambódromo. A compositora Manu da Cuíca, única mulher entre os autores, explica a concepção de um diálogo musical com o Brasil, tratado por “meu nego”.

“Em um tempo de gritaria e pouca escuta, optamos pela conversa. ‘Brasil, meu nego, deixa eu te contar o que toda hora não querem que você saiba’. Alguns dos nomes presentes na sinopse não são conhecidos, e ficava aquela dúvida de como as pessoas receberiam. Decidimos apostar justamente para dar visibilidade a eles. Fizemos uma lista de presença desses heróis de barracões, que constroem todos os dias a história desse país”, conta, orgulhosa.

Apesar da proliferação de temas críticos nas escolhas das agremiações, Simas é cético quanto à interpretação desse fenômeno como uma reação ao avanço do conservadorismo na sociedade brasileira. “Não tenho esse otimismo, nem essa visão romântica da esquerda. A escola de samba dialoga com a circunstância dela. Da mesma forma que a Mangueira faz um enredo saudando as Marielles, Malêis, pode fazer, daqui a dois anos, como no início da década de 1970, quando homenageou a Força Aérea Brasileira”, opina.

O jornalista e escritor Fábio Fabato, pesquisador das escolas de samba, ressalta que as agremiações são uma caixa de ressonância do país e, consequentemente, de suas contradições. Durante a preparação para o desfile que exaltou os heróis da resistência, o deputado estadual Chiquinho da Mangueira (PSC-RJ), então presidente da escola, foi preso acusado de envolvimento em um “mensalinho” na Assembleia Legislativa do Rio.

“A escola de samba é um simulacro da leviandade brasileira, a ponto de conseguir passar uma mensagem fundamental para sensibilizar pessoas, enquanto sua estrutura administrativa é representativa do Brasil oligarca. É uma instituição que caminha nessa corda bamba entre ser a mensagem dos mais fracos, mas também sobreviver. Ela tem que fazer acordos com o status quo para poder gritar contra esse próprio estado de coisas”, analisa.

Torcida da Mangueira empunha bandeiras de Marielle Franco — Foto: Marcos Serra Lima/G1

Além da crise econômica, que afastou patrocinadores dispostos a “comprar” enredos, a emergência de uma nova e pulsante geração de carnavalescos é apontada pelos pesquisadores como fator determinante para a politização da festa.

Simas destaca que Leandro, na Mangueira, e Jack Vasconcelos, na Tuiutí, resgatam o legado do icônico Fernando Pamplona, primeiro a celebrar um personagem esquecido pela narrativa oficial, ao fazer um enredo histórico sobre Zumbi dos Palmares pelo Salgueiro em 1960.

“O Pamplona foi o primeiro cara que chegou e disse que a escola de samba precisa participar do debate público sobre o país. É uma figura-chave, que tinha ficado meio esquecida durante um tempo. Essa geração bem engajada é herdeira dele, ligada à perspectiva de repensar o Brasil, discutir a cultura e identidade brasileiras”, comenta.

A conquista deste ano foi a segunda do jovem Leandro Vieira, que se sagrou campeão já em sua estreia pela Verde e Rosa, em 2016, com um enredo que homenageou a cantora Maria Bethânia. Na quadra da Mangueira, após a vitória, ele criticou a postura do presidente Jair Bolsonaro, que causou polêmica ao compartilhar no Twitter um registro obsceno feito em um bloco de Rua de São Paulo.

“É um recado político para o país todo, que precisa entender que isso aqui é importante. O Carnaval não é o que ele acha. É a festa do povo, cultura popular. Ele deveria mostrar ao mundo o Carnaval da Mangueira”, afirmou. Em meio ao êxtase que sucedeu o desfile na segunda-feira de Carnaval, o carnavalesco teve que lidar com críticas vindas da própria esquerda.

No mês em que o assassinato de Marielle Franco completa um ano, sem elucidação, escola de samba é premiada ao exaltar legado da vereadora e figuras apagadas da narrativa oficial – Foto: Reuters/S. Moraes

Houve intenso debate nas redes após ser noticiado que a família de Marielle Franco, uma das principais homenageadas pela escola, não havia sido convidada para estar com a verde e rosa na avenida. Por sua vez, a viúva da vereadora, Mônica Benício, dividiu espaço no desfile com parlamentares e assessores do PSOL, além de artistas.

Ao jornal O Globo, Leandro justificou a ausência dos pais, irmã e filha de Marielle pelo fato de outra escola, a Vila Isabel, ter feito o convite antes. “Eu jamais esqueceria da família, mas jamais tiraria da Vila o direito de tê-los no desfile, após terem sido os primeiros a convidar e sabendo que a presença seria importante para o desfile deles”, afirmou.

 

 

 

 

 

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