*POR ROSE MARIE GALVÃO – Em junho de 2011, divorciada e com três filhos adultos, passei a residir em Porto Seguro e trabalhar na editoria de um jornal semanal. Trata-se do Topa Tudo, do jornalista Olmiro Pautz Flores. Aqui, curiosamente, me deparei novamente com a Lenda d’A Rua Cova da Moça, uma história que vem lá do passado. Vejamos:
Em 1985, jovem e recém-formada, estava eu redigindo o Jornal da Manhã, situado na Praça Cairu, na cidade de Ilhéus, cuja editoria era assinada pelo jornalista Everaldo Almeida Valadares. Por lá, tive acesso a vários colaboradores que escreviam artigos opinativos para aquele órgão de imprensa, publicado diariamente.
Um desses colaboradores, o advogado João Higino Filho, tornou-se muito amigo da editoria e, regularmente nos brindava com sua presença e seus ‘causos’ misteriosos. Alguns sobre a aparição do fantasma de uma loura sensual que rondava o Cemitério da Barreira, uma antiga invasão localizada na Zona Sul da cidade que depois se tornou um Bairro com o mesmo nome. Certa feita, o dr. Higino nos falou do fantasma da Rua da Cova da Moça, que aparecia na Rua do Mangue, em Porto Seguro. Nesses momentos, o causídico mostrava-se fortemente convicto da verossimilhança da estória, segundo ele, contada pelo seu pai, antigo escrivão de Polícia Civil em Porto Seguro.
Eu, sempre tão cética, estranhamente passei a dar alguma relevância a tal narrativa. Mas logo o tema se esvanecia como fumaça. Estava muito longe de Porto Seguro. Muitos anos depois, eis-me, frente a frente com essa história que me atiça a curiosidade.
Toda manhã, ao cobrir o percurso de casa, no Condomínio Maricota, no Bairro São Sebastião, até a redação do Topa Tudo, na Praça Antônio Carlos Magalhães, no Centro da Cidade, atravessava o trecho de uma via chamada Rua Cova da Moça. Trata-se de uma artéria fincada bem no coração da cidade, de maneira que é transversal à Avenida dos Navegantes e termina no cruzamento com a emblemática Avenida 22 de Abril[1]. Essas ruas compõem a triangulação geográfica onde três narrativas míticas se encontram em Porto Seguro [a saga dos navegadores dos séculos XV e XVI, a epopeia do descobrimento do Brasil e a Cova da Moça]. O local é movimentado – com colégio particular, ponto de táxi, açougues, templos protestantes, empresas, equipamentos públicos, hospital, hotéis, pousadas, lanchonetes, sorveterias, boutiques de luxo, algumas casas de morada com varandas e sobrados antigos de dois andares.
Neste período, começando em 1985 e até 2015[2] Porto Seguro experimenta um crescente de visibilidade. Sua nova configuração institucional é a de um “city marketing”, na definição usada pelo professor e Turismólogo Chris Cooper (2001, p. 382)[3] com o intuito de conceituar como as técnicas de vendas estão sendo adotadas por alguns gestores urbanos. Segundo este autor, “a cidade tenta se transmutar no cenário idílico anunciado nos meios publicitários, e a sua estrutura urbana passa a ser direcionada pela lógica do consumo” (COOPER, 2001, p.382) comandada por grandes empresários, notadamente do setor turístico e imobiliário, em detrimento da lógica das pessoas do lugar.
Como também pontua a professora Ivana Muricy (1996, p.27), “a imagem social da cidade passa a ser condicionada pelo marketing urbano, que no caso de Porto Seguro não é tão organizado e orquestrado pelo poder municipal, como acontece em outras cidades brasileiras” [Curitiba, Fortaleza e Salvador], mas é articulado, sobretudo, pelas agências e operadoras de turismo, pelo Governo do Estado – por meio da BAHIATURSA – e pelos grandes empresários instalados na cidade, como exemplifica Baudrillard (1995, p. 435) “onde tudo se transforma em mercadoria e o consumo passa a ser, cada vez mais, um dever do cidadão, e não um mero prazer” de tal maneira que, “vende-se uma cidade assim como se vendem as demais mercadorias: capricha-se nas ‘embalagens’, nos ‘rótulos’ e em seus aspectos simbólicos” (MURICY, 1996, p. 26).
Seguindo a lógica da cidade como produto, parece até contrassenso que esta Porto Seguro cosmopolita, que atrai turistas de todo o mundo, devido à sua imagem social vinculada ao local aonde aportaram as caravelas portuguesas, mantenha, em sua área comercial, um logradouro com nome tão melancólico; tão lúgubre… Na atualidade, sabe-se que, os nomes dados a esses lugares, como A Rua Cova da Moça, na verdade têm histórias muito obscuras e trágicas por trás deles, que normalmente tem menos a ver com o lugar em si e mais a ver com eventos que aconteceram lá. Por alguma razão, no entanto, esses nomes resistiram ao longo dos séculos, mesmo as histórias por trás deles tendo sido esquecidas há muito tempo, a não ser que uma historiadora e jornalista inquieta decida revolver o passado. Notadamente, o passado do Brasil, marcado por longo período colonial e escravocrata, onde é perfeitamente compreensível que diversos logradouros públicos tenham denominações que remetem à tristeza, à saudade, ao banzo[4]. Por vários locais do país são inúmeros os registros de Topografias Depressivas: o município de ‘Solidão’ e o de ‘Afogados da Ingazeira’, ambos em Pernambuco, o ‘Bairro da Tristeza’, em Porto Alegre, a ‘Rua da Morte’, em Ananindeua, no Pará, a ‘Avenida da Consolação’, tanto em São Paulo quanto em Eunápolis, na Bahia, é o nome dado à artéria onde se encontra Cemitérios do mesmo nome.
No que tange à Rua Cova da Moça nada disso é exceção e, mesmo antes de se tornar institucional, moradores de Porto Seguro já conheciam o local por esta toponímia. Segundo relato da professora Ana Maria Dutra, a rua passou a se chamar Cova da Moça desde que populares, em romaria, enterraram ali o corpo de uma suicida chamada Josefina. (DUTRA, 2010, p. 5). Ora, mediante a assertiva recorrente que uma lenda é sempre localizável em um lugar geográfico determinado advirto que o nome triste dessa rua está articulado à ressonância da narrativa homônima. Uma memória que carrega o pesado fardo da violência contra a mulher.
CÂMARA DE VEREADORES LEGITIMA O NOME
Normalmente, os nomes das ruas cidades são definidos pela Câmara de Vereadores por meio de um processo legislativo que começa com a indicação ou apresentação de um Projeto de Lei, votado em plenário. Em seguida, caso seja aprovado em duas sessões, pela maioria dos membros do corpo egrégio, o Projeto de Lei é encaminhado ao Chefe do Executivo para ser sancionado, ou seja, ser transformado em lei[5]. Entretanto, os nomes dos logradouros públicos nem sempre se originam na Câmara Municipal. O Poder Executivo e a comunidade também podem fazer sugestões levando em conta uma série de fatores, como por exemplo, uma pessoa emérita na localidade e para a qual se deseja fazer uma homenagem póstuma[6] como instrumento de manter a memória das pessoas, ou mesmo oficializar a denominação que se insere na paisagem e para a qual o senso comum já atribuiu uma identidade.
Geralmente, esse nome não oficial costuma se referir a uma peculiaridade do logradouro e “as ruas acabam conhecidas por acontecimentos emblemáticos que abrigam ou abrigaram uma memória, em contraste com os seus nomes oficiais, que denotam relações metafóricas com o logradouro” (PINTO, 2013, p.237). Nomes como Rua 7 de Setembro, 15 de Novembro, 2 de Julho etc.
Ao tentar compreender a dinâmica das homenagens públicas da Câmara Municipal de São Paulo, como títulos, medalhas e a denominação de logradouros, o antropólogo Danilo César Souza Pinto[7], em artigo científico “Etnografia de Espaços Estatais: os nomes das ruas da cidade de São Paulo (2013) ensina que “há valores e coisas que escapam ao Estado, como as denominações populares que insistem em figurar nas cabeças e corações das pessoas à revelia da normalização oficial” (PINTO, 2013, p. 238). Este autor acredita que em nenhum lugar os nomes sejam apenas designativos, sem carga significativa e emocional. O que me faz pensar igualmente que, ruas, mapas e paisagens também podem ser lidas por suas histórias e mitos por trás das designações linguísticas. Nomes de ruas costumam funcionar como marcadores de eventos históricos, como títulos de livros, músicas, filmes, seriados ou novelas.
Ao examinar a atuação estatal ao criar paisagem, mediante o processo específico da denominação do logradouro na Câmara Municipal de Porto Seguro, comprovei, em primeiro lugar, que de fato, não se tem como certo quando nasceu ou desde quando se começou a identificar, por este nome, o antigo caminho até a praia das Pitangueiras ou Praia do Cruzeiro. De acordo o memorialista Romeu Fontana (1985), “consta que tal denominação tenha sido datada do período simultâneo ao enterro da Josefina. O local onde hoje está a Capela era uma antiga passagem de animais”. (FONTANA, 1985, p.94). Este escritor, que em 1985 passou a morar na Rua Cova da Moça, conta que quando chegou ali “não havia quase nada. A casa dos meus pais foi o segundo imóvel construído no local”. Conhecido como um contador de causos de humor, Fontana então denominou sua casa de “Tumba 193”. Ele explica que “já havia na rua uma cruz de madeira, fincada no chão, marcando o local da sepultura […] como o povo contava essa história, passei a chamar minha casa de Tumba 193”. Brinca.
Tal informação é confirmada pelo subsecretário da Câmara Municipal de Porto Seguro, Sérgio Rodrigo da Silva. Ele assegura que “a legislação que denomina a atual Rua Cova da Moça é anterior a 1971” . Na ocasião, o nome já era de domínio popular. No entanto, a ocorrência de uma duplicidade[8] levou os vereadores, reunidos em sessão ordinária a aprovar, por unanimidade, o Projeto de Lei de número 177, modificando o nome da Travessa Cova da Moça, localizada no Bairro Pacatá, passando a se chamar Rua Manoel Ramos de Menezes. O PL foi sancionado pelo prefeito José Ubaldino Alves Pinto, o Baiano, transformando-o em Lei Municipal de Número 117 de 16 de Novembro de 1992.
Na exposição de motivos, os vereadores entenderam que aquela travessa, no Bairro Pacatá, não seria o local original onde o corpo da Josefina está enterrado, mas sim, o antigo caminho próximo ao Fortim de Gonçalo Coelho, cuja denominação permanece ainda hoje, dada como oficial e acatada institucionalmente, visto que a outorga de um nome, por meio de decisão da Câmara Municipal, legitima os relatos dos moradores de Porto Seguro bem como as narrativas acerca da Lenda d’A Rua Cova da Moça, como é possível depreender do Inventário de Proteção do Acervo Cultural a seguir: “o povo passou a considera-la mártir e santa, levando seu corpo em procissão até o fim da Rua Nova, aí dando-lhe sepultura, em frente ao Fortim de Gonçalo Coelho. O lugar ficou conhecido como Cova da Moça”. (IPAC, 1988, p. 388 v.5).
Mais ainda, ao determinar, entre duas ruas com o mesmo nome, qual delas preserva a memória de um episódio (real ou imaginário), o objetivo do legislador – apesar de estar envolvido em um cenário estatal determinado[9] é que desejava que ficasse perpetuado para as próximas gerações (ARENDT, 2003, p.74) “favorecendo a permanência da memória, cuja função é eternizar a sua lembrança, como uma verdadeira encarnação da história”, do que se pressupõe em Arendt, “se os mortais conseguissem dotar suas obras, feitos e palavras de alguma permanência e impedir sua perecibilidade, então essas coisas ao menos em certa medida entrariam no mundo da imortalidade e aí estariam em casa, e os próprios mortais encontrariam seu lugar no cosmos, onde as coisas são imortais, exceto os homens”. (ARENDT, 2003, p.72).
Ouso categorizar que o poder público inicia assim o processo de legitimação e criação de locais físicos de patrimônio, capazes de ativar a memória dos personagens da lenda em um espaço público e por isso “lugar da memória coletiva”, como se encontra na definição de Le Goff a seguir: “lugares de memória são alicerces da memória coletiva que podem se apresentar sob a forma de diversos locais, artefatos ou manifestações coletivas, explicitando a diversidade do sentido da memória e dos lugares de memória. Lugares topográficos: como os arquivos, as bibliotecas, os museus; lugares monumentais: como os cemitérios ou as arquiteturas; lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionais como os manuais, as autobiografias ou as associações: estes memoriais têm sua história”. (LE GOFF, 1990, p. 473).
Tudo isso faz parte da ideia de que A Rua da Cova da Moça, como lugar de memória coletiva em Porto Seguro, configura-se essencialmente por ser um espaço físico onde a ritualização de uma memória-histórica pode ressuscitar a lembrança – tradicional meio de acesso a História. E, mesmo que legalmente a outorga de nomes de ruas constitua-se somente referências espaciais precisas para os Correios [já que a homonímia é teoricamente proibida], para a maioria da população elas são uma forma eficaz de perpetuar a memória de pessoas ou de grandes acontecimentos. Além disso, esses nomes “guardam uma carga sentimental muito grande, porque também funcionam como mecanismos de criação do passado ou de acontecimentos” (PINTO, 2013, p. 238)
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Ainda discorrendo acerca da toponímia dos lugares tristes, em 2015 o Portal Eletrônico de notícias denominado G1 publicou que um artista australiano, Damien Rudd, de 31 anos, pretendia lançar um livro explicando as histórias por trás de nomes como ‘Rua da Morte’, ‘Fracasso’ (Reino Unido), Cruzamento das Ruas ‘Desespero’ e ‘Solidão’, ‘Fim do Mundo’ (ambas na Califórnia, EUA), as ‘Ilhas da Tristeza’ (Canadá), ‘Enseada Infeliz’ (Canadá), ‘Lagoa da Depressão’ (Estados Unidos), ‘Rua do Solitário’ (Finlândia), ‘Pouca Esperança’ está localizado no Wisconsin (EUA), a ‘Logoa da Melancolia’ (Canadá) e tantos outros (GLOBO, 2015, p.3).
A Conta na rede social teve início quando Damien Rudd chegou por acaso a uma montanha na Austrália, chamada “Mount Hopeless” (“Monte da Desesperança”). Intrigado, pesquisou a origem da alcunha e descobriu que o local foi batizado assim em 1840, pelo explorador Edward Eyre durante uma expedição pelo interior da Austrália. “Ao chegar ao monte, Eyre topou com um lago intransponível e teve de desistir de seguir em frente. Daí o nome, que representa do fracasso da empreitada. A partir daí, Rudd começou uma coleção de locais com nomes tristes”. (GLOBO, 2015, p. 4)
[1] Refere-se à narrativa do mal dito descobrimento e a epopeia dos navegadores portugueses.
[2] Ver Capítulo 1.
[3] COOPER (2001, p. 382) Ao conceituar city marketing ou marketing urbano Cooper defende que a prova maior do sucesso do marketing como ciência que desenvolve uma imagem, uma percepção ou um posicionamento na mente dos seus consumidores é a de que, na atualidade, “as organizações que utilizam o marketing não se limitam a empresas comerciais”, uma vez que as técnicas de marketing estão sendo paulatinamente incorporadas por outras instituições públicas, chegando a ser adotadas por alguns gestores urbanos.
[4] Banzo é uma palavra que, segundo Nei Lopes, no Novo Dicionário Banto no Brasil, tem origem na língua QUICONGO, mbanzu: pensamento, lembrança; e no QUIMBUNDO, mbonzo: saudade, paixão, mágoa. Para ele, “Banzo é uma nostalgia mortal que acometia negros africanos escravizados no Brasil.” Nos dicionários oficias de língua portuguesa, banzo é definido como saudade da África, ou como forma de adjetivação de pessoa triste, pensativa, atônita, pasmada, melancólica.
[5] O documento que faz referência à necessidade de identificar as ruas por causa da distribuição dos Correios. A fonte original encontra-se disponível no Acervo Público da Câmara de Vereadores de Porto Seguro.
[6] Na maioria das cidades brasileiras os nomes de ruas só podem ser atribuídos a pessoas já falecidas.
[7] Danilo César Souza Pinto é doutor em antropologia Social e professor adjunto da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, campus Jequié. E-mail: bragacso@yahoo.com.br
[8] Tal ato constitui homonímia, sendo vetado por lei, mesmo que se alterem os elementos que compõem o nome. Contudo, a regra não é seguida à risca em todo o país.
[9] Como o nome das ruas serve para orientação dentro da cidade, não é recomendado ter ruas com nomes iguais.
*Rose Marie Galvão é jornalista e historiadora.