POR FERNANDO HORTA – BRASÍLIA – É exatamente por ter dado certo que Marx permanece assustando a todos os exploradores e rompendo as amarras de todos os explorados que aceitam o desafio de ler e pensar para além do idealismo
Karl Marx nasceu no início do século XIX, mais precisamente em 1818. E não é injusto dizer que ele criou o mundo que conhecemos. Sem Marx o século XX não existiria da forma como o conhecemos, e mesmo o capitalismo, que no século XIX iniciaria sua expansão como sistema mundial, não teria sido nem parecido com o que temos hoje.
As ideias de Marx influenciaram desde a economia, história e ciência política, até a psicanálise ou a psicologia. Existem poucos nomes na história da humanidade que tenham sido tão debatidos, criticados, exaltados ou cujas ideias tenham tido tanta absorção e importância.
O século XX é fruto do amor e do ódio à Marx como, talvez, somente o século V d.C. tenha alguma semelhança, em virtude da importância das ideias de um outro revolucionário, este nascido na Galileia.
É preciso que se diga, contudo, que Marx não chancelaria a afirmação inicial deste texto. A essência das explicações marxistas no campo da história é que todo homem é fruto das condições materiais em que ele é criado. Marx e seu materialismo histórico, lembrar-nos-ia que ele, Marx, é fruto do acirramento das contradições e disputas dentro do desenvolvimento capitalista e, provavelmente, caso o sujeito Karl Marx não tivesse existido, outro tomaria o seu lugar em demonstrar e criticar os mecanismos capitalistas.
Marx “deu certo”. E é exatamente por ter dado certo que ele permanece assustando a todos os exploradores e rompendo as amarras de todos os explorados
Esta linha estrutural que rege os acontecimentos humanos e que – de alguma forma – não se sujeita aos homens é característica de todos os pensadores do século XIX. Não apenas o estruturalismo marxista, mas também o evolucionismo, a que Marx agradece a Charles Darwin já na primeira edição d’O Capital, são, paradoxalmente, os pontos mais utilizados e mais criticados de pensamento marxista.
Não poderia ser diferente, mas Marx partilha da noção de superioridade do discurso científico para compreender a realidade. A diferença do pensamento de Marx, já no século XIX, é afirmar que a filosofia (e a ciência em geral) não podem se contentar apenas em explicar o mundo, mas devem também mudá-lo.
E, enquanto quase todas as ciências foram se aninhando dentro das universidades e do discurso de “neutralidade” e “objetividade”, Marx, de 1818 até 1883, ano de sua morte, caminhou para dentro da sociedade e deixava clara a sua posição em defesa da transformação radical do mundo. Em defesa, pois, da revolução.
Marx “deu certo”. E é exatamente por ter dado certo que ele permanece assustando a todos os exploradores e rompendo as amarras de todos os explorados
Ao contrário, entretanto, do que a maioria das pessoas pensam, Marx era um crítico voraz da violência. Em seus estudos sobre a França do século XIX, em diversas passagens ele condena as “barricadas” e o “enfrentamento de rua” sem que existam “meios materiais” que permitam a vitória.
Karl Marx se impressionou com o nível de violência que o capital estava disposto a perpetrar para evitar qualquer mudança, e o resultado sangrento da chamada “Primavera dos Povos” (1848), na Europa, convenceu-lhe ainda mais sobre o acerto de sua postura contra a violência. Em suas discussões com Bakunin, no centro da primeira Internacional Comunista, fica evidente que Marx apenas aceitava a violência como parte da mudança e justa e precisamente na quantidade necessária para que a revolução acontecesse. Não mais.
IGUALDADE EM PRIMEIRO LUGAR
A noção de igualdade marxista é dar aqueles que precisam mais, mais. O fim do sistema de exploração e concentração privada de riqueza faria com que todo o lucro (fruto do trabalho social) fosse canalizado para o Estado e para a coletividade. Com esta ideia, a URSS conseguiu sair de uma condição feudal em 1917 para uma potência nuclear em 1949.
E isto tendo lutado duas guerras mundiais e uma guerra civil. A mesma noção fez Cuba ter o melhor sistema de saúde e educação da América (contando os EUA). A mesma ideia fez a China, que tinha na década de 60 o mesmo PIB do Brasil, ser hoje a segunda maior economia do mundo e certamente passará os EUA em dez anos, no máximo.
Como teoria e prática são indissociáveis para os marxistas, é possível dizer que o marxismo “deu certo” em tudo o que se propôs a fazer. Não somente Marx é o pensador mais importante dos últimos três séculos, como todos os que aprofundam suas ideias têm tido um impacto relevante na sociedade.
Contudo, assim como a física pode ser usada para construir uma bomba atômica ou para criar meios para salvar vidas, o marxismo pode ser usado para legitimar a opressão ou para promover a libertação.
Neste ponto, as críticas aos modelos, conceitos e teorias marxistas ocorrem desde praticamente a sua gênese. Ninguém foi mais violenta na crítica às teorias revolucionárias de Marx do que Rosa de Luxemburgo. Ninguém foi mais criativo na transposição das ideias marxistas para o século XX e XXI do que Habermas ou Adorno.
“Não se preocupe, você pode ler Marx usando seu iPhone. Ninguém quer tomá-lo de você, até porque ele é seu, segundo as palavras do próprio Marx: ‘Se a classe trabalhadora a tudo produz, a ela tudo pertence’”.
Ninguém foi um melhor operador da mudança do que Lênin, e muitas vezes reinterpretando Marx. O pós-colonialismo e mesmo o pós-modernismo são tributários da noção marxista crítica de emancipação, de alienação e de ideologia, como formadoras dos sujeitos.
Marx está cada vez mais atual, mas é claro que não se poderia esperar que um filósofo do século XIX antecipasse todo o século XX e XXI. Marx antecipou muita coisa. Sua explicação do capitalismo continua vívida e pulsante. Suas considerações sobre as guerras e crises econômicas regenerativas estão na essência das argumentações hoje. Sua divisão do mundo entre exploradores e explorados, embora tenha ganho algumas tonalidades diferentes, se mantém.
O estruturalismo marxista caiu, como todos os estruturalismos do mundo. O evolucionismo marxista também já não se sustenta com a força de outrora, mas sua utopia permanece. Marx continua amedrontando a todos os que não conseguem compreender a sua realidade e a todos os que vivem explorando aqueles que não compreendem a sua realidade.
MARX “DEU CERTO”
O fantasma que rondava a Europa, hoje, ronda todo o mundo e até mesmo no centro do capitalismo mundial um candidato que se diz “socialista” tem enorme apelo político e popular. Marx dizia que o medo da “abolição da propriedade privada” era irreal uma vez que para 9/10 da população já não existia propriedade alguma para defender. Hoje são 99 pessoas em cada 100 que nada possuem.
Marx “deu certo”. E é exatamente por ter dado certo que ele permanece assustando a todos os exploradores e rompendo as amarras de todos os explorados que aceitam o desafio de ler e pensar para além do idealismo. É nas condições históricas, econômicas e materiais que se encontram os problemas e as soluções para a humanidade. E é lá que você vai encontrar Marx.
Não se preocupe, você pode ler Marx usando seu iPhone. Ninguém quer tomá-lo de você, até porque ele é seu, segundo as palavras do próprio Marx: “Se a classe trabalhadora a tudo produz, a ela tudo pertence”.